A CARIDADE

 

 

João Ozol era letão de origem. Fugiu da Letônia quando a Rússia invadiu e dominou o país.

Odiava o comunismo e por extensão, qualquer forma de governo e qualquer convenção social.

Falava mal o português e pior ainda o leto. Dizia sempre: "uma língua Joãozinho não aprendeu e a outra Joãozinho esqueceu".

Tinha um ferro-velho e uma serraria.

Dava trabalho a quem queria trabalhar por pouco dinheiro. Se necessário, dava também, moradia e comida. Permitia que o trabalhador usasse quanta lenha quisesse para se aquecer no frio inverno de Urubici.

Só não pagava imposto algum. Ah, isso não pagava mesmo! Não mesmo!

Mas condoía-se muito da desgraça alheia. Para ele, seres humanos eram seres humanos. Sobre isso não admitia discussão. Rico ou mendigo, para ele eram iguais e recebiam o mesmo tratamento, aliás sempre cortês, mas duro se necessário.

Foi assim que numa fria manhã do gelado inverno cheio de cerração de Urubici, quando ia para o mato com o caminhão buscar toras para a serraria, se deparou com um mendigo caído na sarjeta. Parou o caminhão, desembarcou e foi dar uma olhada de perto.

O mendigo estava entanguido de frio.

Tentou reanimá-lo, mas a reação foi mínima. Certo de que o homem precisava de cuidados médicos, resolveu levá-lo até o hospital.

Forte como era, ergueu-o do chão e colocou-o sobre a prancha do caminhão e dirigiu-se ao Hospital de Caridade na Praça, distante cerca de três quilômetros.

Lá chegando, sobraçou o mendigo que mal podia andar e levou-o até a portaria do hospital, sentando-o num banco na recepção.

Atendeu-o a madre Consumata, superiora das freiras que exploravam o hospital.

Madre Consumata era uma freira de porte alto, vestida com o hábito tradicional de sua congregação franciscana e portava à cintura um grosso terço do rosário de contas de madeira preta.

João Ozol apontou para o mendigo  e falou:

- Madre, Joãozinho encontrou esse homem morrendo de frio e trouxe-o aqui para que vocês lhe dêem alguma coisa que o esquente. Um remédio, uma sopa, sei lá...

- Não há problema, seu João – falou mansamente a madre – só que o senhor tem que assinar responsabilidade aqui. - E apontou-lhe uma linha do livro de entrada de pacientes

O sangue fez pulsar as veias da testa do leto. 

- Não, Joãozinho não assina responsabilidade! Joãozinho, trouxe o mendigo aqui no hospital de caridade porque ele precisa de ajuda. A caridade de Joãozinho termina aqui. Quem tem que fazer a caridade agora não é o Joãozinho, mas vocês que têm o hospital de caridade, e é disso que esse homem precisa!

- Ah, mas não é bem assim, seu João. Alguém tem que se responsabilizar...

- E se eu não me responsabilizar, o homem vai morrer aí no banco? Vai?

João estava furioso.

- É, mas o hospital não pode arcar com as despesas e atender qualquer um que apareça aqui.

João Ozol, ficou mais furioso ainda. Parou, pensou e resolveu:

- Tá bom. Eu assino. Me dá essa caneta!

E num gesto rápido, agarrou o rosário que a freira tinha à cintura, arrebentou-o, jogou-o no cesto de lixo que havia perto e disse:

- Pendura aí um saco para carregar dinheiro!

Pegou a caneta, assinou e saiu porta afora.