QUANDO O CIGARRO SALVOU MINHA VIDA

 

Era o ano de 1965. Mês de julho. O inverno em São Joaquim e Bom Jardim da Serra estava especialmente frio. Geadas muito fortes e temperaturas que não ultrapassavam a 0° C ao meio-dia em ponto e com sol brilhando.

Em São Joaquim e Bom Jardim da Serra é sempre assim: céu de um azul magnífico, sem uma única nuvem que, parece, vão todas para Urupema, onde chove com uma freqüência incrível.

Nessa época eu trabalhava como contador de uma madeireira instalada na região e que possuía diversas serrarias, duas delas em Santa Bárbara, Município de Bom Jardim da Serra.

Fazia parte do meu trabalho, ir até cada uma das serrarias, uma vez por mês para fazer a contagem do estoque de madeira que fora serrada para efetuar o pagamento aos empreiteiros.

Eu ia sempre de carona ou a pé. Condução motorizada só fez parte do trato que o meu patrão fez comigo no dia em que fui trabalhar com ele. Nunca cumpriu essa parte do acordo e eu sempre caminhei a pé desde a estrada geral até a serraria, dezoito quilômetros serra acima. Ia e voltava quase sempre a pé.

Foi assim que em julho de 1965 fui contar a madeira na Serraria do Baduca, como era chamado o empreiteiro, em Santa Bárbara. Contei o estoque. Fiz os cálculos e me preparei para caminha até a estrada geral, em Vacas Gordas, no município de Urubici, onde pegaria o ônibus que vinha de Florianópolis e ia para São Joaquim, cidade em que eu morava e pagava pensão na humilde mas acolhedora casa da Dona Luiza do falecido Faustino.

Eram umas três horas da tarde e o tempo estava "enferruscado" (expressão regional usada em São Joaquim, para designar o tempo fortemente nublado).

– Acho que vai nevar – falou Baduca, olhando para o céu cinzento.

- Que nada – falei. Vai é esfriar mais ainda. Quando chegar lá em cima no Conta Dinheiro o vento vai estar de rachar. Eu vou é me mandar antes que fique muito tarde e eu acabe perdendo o ônibus em Vacas Gordas. Até outro dia.

- Boa viagem – disse Baduca.

Eu peguei a estrada de chão e muito cascalho solto. Pasta de couro na mão, gola da japona marrom erguida no pescoço, boné de lã, calça de brim, duas camisas vestidas uma sobre a outra, além de uma camiseta de malha, sem mangas, sapato de couro preto e sola também de couro. Na época não se conheciam os tênis de hoje. Nos bolsos, um canivete, um maço de cigarros e uma caixa de fósforos. Eram três coisas que na época faziam parte da minha vida, embora mais tarde, tenha deixado definitivamente do cigarro e dos fósforos, mas não do canivete. Puxei a ponta da manga de uma das camisas por sobre a mão que segurava a pasta, cheia de papéis (eu não possuía luvas), de modo a proteger os dedos do frio, enfiei a outra mão no bolso da japona e comecei a andar morro acima, com pressa e determinação.

A serraria ficava localizada na baixada e eu tinha que subir por uma estrada por entre o mato que subia até o campo no alto, caminhar pelo planalto uns seis quilômetros e descer no outro lado onde ficava o lugar chamado Conta Dinheiro, para chegar, depois de mais outros seis quilômetros de morro abaixo, em Vacas Gordas, onde passava a estrada geral Urubici – São Joaquim e onde eu poderia pegar o ônibus aí pelas sete horas da noite.

Já havia caminhado uns quatro quilômetros estrada acima, quando o vento aumentou e começou a cair uma chuva de neve. Logo em seguida começou a nevar levemente, mas eu não atinei com o perigo que estava adiante. Continuei caminhando, caminhando, a neve foi aumentando, aumentando... Quando me precatei, a estrada já estava coberta com uma fina camada de neve e eu chegava no alto com a neve aumentando sempre mais.

Em questão de minutos a neve cobriu tudo e eu já não distinguia mais onde terminava a terra e começava o céu. Tudo ficou de uma única cor. Também comecei a não distinguir mais os contornos da estrada e fui seguindo no que supus ser o rumo certo que me levaria para Vacas Gordas.

Como a vegetação na região é constituída exclusivamente de capim, sem árvores, logo me senti perdido e sem saber para que lado seguir.

Estava tudo igual: tudo era céu ou tudo era campo nevado. E eu aí no meio daquilo tudo.

O jeito foi seguir em frente.

Sabia que acabaria descendo em algum grotão e que lá embaixo não haveria neve, ou se houvesse neve, ao menos não haveria vento tão forte e o frio não seria tão intenso.

Caminhei, caminhei e depois de umas duas horas, mais ou menos, comecei a descer da montanha. Divisei as primeiras árvores. Senti um imenso alívio e algum conforto, pois já não estava tão frio.

Mas estava, também com um outro problema. Escurecia rapidamente. Pouco minutos depois já estava escuro.

Tateando, fui descendo pela encosta até que cheguei a um socavão de pedra e onde me conformei em ter que passar a noite. Risquei um fósforo e vi que alguns galhos de vegetação seca caíam por toda a entrada da toca. Enfiei-me por entre eles, agarrei-os com as mãos e tratei de preparar uma fogueira. Mas os ramos estavam muito úmidos e depois de inúmeras tentativas, não conseguia fazer com que pegassem fogo.

Já tinha gasto todo o papel disponível e ainda não tinha acendido o fogo.

Lenha havia bastante, mas eu não conseguia acendê-la.

Sentei-me e tratei de encolher-me ao máximo para afugentar o frio, cada vez mais forte e mais cortante. A escuridão era total e meu medo igual a ela.

Havia até me esquecido de fumar, tanta era a minha preocupação.

Mas sentado aí, sem poder fazer fogo, tratei de acender um cigarro e dar umas tragadas para aplacar meu medo e meu nervosismo.

Foi então que tive a idéia: a brasa do cigarro ficava acesa. Porque não começar a fogueira com os cigarros? Eu tinha uma carteira cheia deles. Tinha fósforos suficientes, também. Lenha não faltava.

Rasguei o forro da minha japona, desmanchei alguns cigarros e coloquei o conteúdo dentro de uma trouxa de pano, quebrei uns gravetos mais finos arranjei-os por sobre o pacotinho de fumo, papel de cigarro e pano e pus fogo. Formou-se uma bela brasa que aos poucos acendeu um graveto, depois outro, depois um ramo mais grosso e, daí há pouco, uma bela fogueira me esquentava. O frio ficou mais suportável, a noite menos pavorosa e a minha esperança mais viva.

Mas foi uma longa noite. Não dormi. Tinha que alimentar a fogueira. Fumei bastante, pois sobraram muitos cigarros.

Logo ao clarear o dia seguinte, continuei minha descida até o fundo da canhada e segui riacho abaixo. Cheguei a uma estrada de "puxo" de toras e me achei de novo. Estava na Toca Ruim e fui sair na estrada geral uns seis quilômetros mais ao sul, na Serraria Santa Teresa, da Florestal. Estava louco para fumar. O cigarro havia acabado. Fome eu não sentia, mas vontade de fumar sim. Peguei uma carona e fumei um "palheiro" que o dono da caminhonete me deu e fui feliz para casa.

O cigarro fez um estrago enorme na minha saúde até 1980, quando finalmente me livrei dele, mas se eu não fumasse então, e usasse só o canivete como hoje faço, certamente não estaria aqui contando esta história.

Mas não se iluda o prezado leitor, os danos produzidos pelo cigarro, ainda irão me matar!!!