O DENTISTA ENGANADO

 

 

Roberto Klika, filho de imigrantes letos, era dentista.

Dentista prático, desses que não hesitavam em resolver qualquer problema nos dentes de seus pacientes com o boticão. Naquela época, década de 60 era assim: boticão, dente de ouro, chapa e dentadura.

Era casado com Alice, com quem tivera alguns filhos.

Comentava-se muito em Urubici que ambos, quando jovens, formavam o casal mais belo das redondezas: um casal de deuses. Ele alto, loiro, olhos azuis, ela alta, loira, olhos azuis e seios grandes saindo do decote. Formavam o casal mais belo... apenas isso.

Alice pulava a cerca, sempre que podia (todo mundo sabia disso e Roberto, também).

Lugar pequeno, onde o padre vigário jamais permitira que qualquer casa de mulheres vingasse lá se estabelecer, não havia como satisfazer às fantasias sexuais. Por isso, Alice era assediada dia e noite.

Alguns a comiam. A maioria dizia que comia. Outros tantos tentavam comê-la. Comer, comer mesmo, acho que ninguém comeu, pois Roberto a pastoreava com a germânica  ferocidade de um pastor alemão.

Mas era dentista, e durante o atendimento aos pacientes, geralmente à noite, quando a dor de dentes costuma ser mais pertinaz, ninguém sabia o que acontecia com Alice entre os ciprestes que haviam crescido até os céus em frente à sua casa, encobrindo-a totalmente das vistas de quem passasse pela estrada e, também, de quem quisesse olhar de dentro de casa para o que se passava ao seu redor.

Pedro era padeiro e vivia perseguido pela monotonia das relações sexuais com a sua magrinha esposa: uma santa, na igreja aos domingos, e certamente uma dificuldade insuperável na cama. Resolveu comer a mulher do Roberto.

Com muito jeito e cuidado, conseguiu falar com Alice naquela tarde e combinou que à noite, tão logo Roberto se recolhesse, ela sairia para a frente da casa e entre os ciprestes se encontrariam. Alice se pusera à sua disposição libidinosa com um sorriso maroto, nos lábios já velhos, de cantos caídos, mas ainda com algum encanto.

Pedro aguardou ansioso.

A noite veio escura.

Iluminação na rua, naquela época, não havia, de forma que Pedro passou diversas vezes caminhando pela rua em frente à casa.

Foi, voltou, tornou a ir, inúmeras vezes.

Roberto continuava firme dentro de casa, a luz acesa.

Lá pelas tantas alguém entrou pelo pátio a dentro, bateu à porta do consultório. Roberto atendeu. Era um paciente.

Pelos vidros da janela sem cortina, Pedro viu o paciente sentado na cadeira. Era a sua oportunidade. Entrou e escondeu-se entre os ciprestes à espera de Alice que deveria vir ao encontro conforme o combinado.

Estava bastante escuro. Pedro encostou-se no tronco de uma árvore, em posição em que não conseguia mais ver a janela do consultório. Esperou uns vinte minutos na mais completa escuridão.

De repente ouviu passos que se aproximavam.

Um vulto escuro vinha vindo em sua direção mas se desviou e parou de costas para Pedro que não titubeou e se dirigiu para o vulto:

– Boa noite.

– Boa noite – foi a resposta em voz grossa de Roberto, que vestia um sobretudo avermelhado e que Pedro confundira com Alice.

Pedro pensou rápido. Levou a mão esquerda ao lado maxilar e choramingou:

– Seu Roberto, estou louco de dor de dente.

Roberto teve um lampejo nos olhos:

– Então vamos lá para dentro, ver o que tem o seu dente.

Ambos entraram no consultório. Pedro sentou-se na cadeira e Roberto fê-lo escancarar a boca. Olhou.

– É... está feio. Não tem jeito esse seu dente... Vou ter que extraí-lo ou vai enlouquecer de dor. - diagnosticou Roberto diante do dente são.

Pedro tremeu nas bases. Não teve outra saída:

– Sim... sim, senhor.

Roberto injetou-lhe anestesia, tomou o boticão.

Agarrou um canino totalmente são: uma torcida para a direita, uma torcida para a esquerda, um puxão firme e, triunfante, exibiu o dente ensangüentado ao transido padeiro.

– Esse não incomoda mais – vibrou. São mil cruzeiros.

Pedro que não tinha um centavo no bolso, foi obrigado a pedir prazo até o dia seguinte para pagar a conta, o que foi aceito prazerosamente por Roberto.

Tesão e dente perdidos, Pedro cambaleou pela estrada até sua casa, agora sentindo dores terríveis, já que o efeito da anestesia fora bloqueado pelas pingas que bebera para tomar coragem antes de ir ao encontro.

Roberto jogou o dente no lixo e lavou cuidadosamente o boticão, com um sorriso de satisfação estampado no rosto gordo.

Coçou a testa e foi para a sala escutar a Voz da América.