A DOMINGUEIRA

 

 

Biguaçu, cidade localizada no litoral catarinense, no continente, na parte que ladeia a Baía Norte formada pela Ilha Santa Catarina, onde está a cidade de Florianópolis(*), na década de 50 era freqüentemente vitimada pelas enchentes do rio que deságua no mar,  bem próximo ao centro da cidade.

Por essa razão, na época, a população mais pobre, portanto a mais vitimada, costumava construir as casas de madeira sobre paliçadas, evitando, assim, a entrada da água por ocasião das cheias.

O acesso se dava por uma escada, também de madeira, de seis a oito degraus.

Uma das tradições locais são as domingueiras,

Aos domingos à tarde, ainda hoje, os jovens costumam se reunir para dançar e namorar.

Naqueles tempos, de pouca violência como a que hoje conhecemos, a maioria das pessoas usava uma peixeira na cinta, mesmo quando ia se divertir em lugares públicos. E quando surgiam desentendimentos, freqüentes até, todo mundo sabia que a faca ia pegar e tratava de cair fora o mais rápido possível, enquanto a turma do deixa-disso, tratava de apaziguar os brigões e desarmá-los. Depois a festa continuava ao som da sanfona, do violão, cavaquinho e pandeiro.

Salvador Rosário e seu amigo Edemir, ambos ferreiros,   eram assíduos freqüentadores das domingueiras, principalmente porque, por serem negros, não tinham acesso  ao clube local. Dançavam e bebiam cachaça e corriam de uma para outra domingueira, sempre à procura de alguma mocinha faceira que pudessem namorar.

Quando impedidos pelo dono da casa de participar da dança, não deixavam  por menos: juravam vingança e se vingavam. Na primeira oportunidade, entravam sorrateiramente no salão com os bolsos cheios de crina de cavalo, picada miúdo, ou pimenta do reino em grãos e a deixavam cair ao chão aos poucos, de forma que ninguém notasse. Esvaziados os bolsos, saiam tão discretamente quanto haviam entrado e à segura distância ficavam observando o movimento das pessoas que estavam a dançar.

Qualquer dos produtos usados, crina picada ou pimenta do reino, produzia a maior confusão. Com os movimentos da dança a crina picada miúda subia e penetrava pelas roupas, de baixo para cima; a pimenta, esmagada pelos sapatos, também subia num pó invisível, provocando coceiras terríveis e espirros. Só se via mocinha saindo porta à fora, erguendo as saias e fincando as mãos dentro das calcinhas para coçar as xoxotas, dos sutiãs para coçar os seios e os rapazes coçando o cu e o saco, menos discretamente ainda; arrancando as camisas e as calças e ficando só de cuecas. Os ânimos iam se exaltando pouco a pouco, todos à procura do filho da puta que fizera aquilo. Facas apareciam de dentro das calças e as mocinhas tratavam de se afastar o mais rapidamente possível, coçando barrigas, peitos e bundas e os homens, andando ao redor, domados pelo furor e desejo de vingança, enquanto se coçavam a mais não poder.

Se o estrago fosse com pimenta, a coisa ficava limitada à coceira e espirros, mas se fosse crina de cavalo, a roupa tinha que ser jogada fora. Não havia cristo que conseguisse usar novamente um traje contaminado pois  os picos produzidos pela crina cortada provocavam uma coceira infernal.

Se os autores fossem descobertos, certamente haveria morte.

O dono da domingueira se sentia duplamente ofendido. Primeiro porque alguém detonara sua festa, segundo, porque sabia que, à boca pequena, seria motivo de chacota em toda a redondeza: “Botaram pimenta na domingueira de fulano”.

Salvador e Edemir andavam loucos para se vingar do Luciano, dono de um salão onde todos os domingos havia domingueira. Gaiteiro dos bons, sempre havia muita gente querendo dançar. Mas tinha que pagar, se não, não entrava. Salvador e Edemir não entraram. Sempre sem dinheiro. Não conseguiam entrar, embora não houvesse discriminação quanto à cor da pele.

O salão, com uns 60 metros quadrados, estava construído na beira da estrada, e ficava uns dois metros acima do chão, firme sobre pilares de madeira de lei para evitar as enchentes. Uma escada dava diretamente na única porta.

Era mês de julho e escurecia cedo.

Salvador e Edemir observaram a escada e tiveram uma idéia terrível. Entraram por sob a escada e arrancaram os pregos que a prendiam

Subiram  e derrubaram a escada,  esgueiraram-se para dentro do salão, cada um para um lado sem serem  percebidos na fraca luminosidade produzida pelas luzes a querosene colocadas nos cantos.

A música que estava sendo tocada era do tipo limpa-banco e todo mundo estava dançando.

Rodearam o salão e quando se encontraram atracaram-se, fingindo estar brigando.

Foi aquele tumulto. Mulheres aos gritos jogaram-se para a saída para fugir da briga. Não encontrando a escada, caíam aos montes, umas sobre as outras, junto com muitos homens que, também, preferiam fugir da briga. Entre eles, estavam Salvador e Edemir.

Cada um safou-se como pode.

Acabado o tumulto, Salvador notou que Edemir não aparecera. Foi até a entrada do salão onde havia um amontoado de gente ao redor de uma pessoa caída.

Era Edemir com um bruta fratura exposta na perna, vítima da própria sacanagem.

 



(*) Florianópolis tem esse nome em homenagem a Floriano Peixoto, sob cujo governo uma centena de desterrenses foi executada na fortaleza de Anhatomirim, na ilha do mesmo nome - (a cidade se chamava Nossa Senhora do Desterro, ou simplesmente, Desterro), - por serem contrários à mudança do regime, de imperial para republicano. Assassinados por suas idéias. A subserviência dos políticos e as oligarquias de então, ainda hoje estão no poder, só que a subserviência, hoje, é em favor dos Bancos e grandes conglomerados econômicos.