A FICHA, ENFIM CAIU

 

 

Cheguei à triste conclusão que sou um caso raro de lentidão mental.

Concluí isto há poucos dias, ao lembrar um episódio ocorrido há cerca de 15 anos atrás, talvez mais.

Ia eu para o trabalho, depois do almoço e subia a rua Jerônimo Coelho, próximo à esquina com a rua Tenente Silveira, em Florianópolis, quando me deparei com um moço, de vinte e poucos anos, alto e magro, vestido razoavelmente bem, a remexer em um monte de lixo, num canto junto à calçada.

Causou-me especial estremecimento íntimo, verificar que o rapaz levava à boca um pedaço de papel, ou plástico transparente e lambia a sobra de alguma substância pastosa de cor marrom, que, supus, seria o resto de algum doce.

Tocado de emoção, meti a mão no bolso e de lá retirei todo o dinheiro que possuía e estendi a mão em sua direção. Eram umas cinco ou seis cédulas de pouco valor. De um salto, ele arrancou-me o pequeno maço de cédulas da mão, ferindo-a com suas unhas, saiu correndo e dobrou a esquina da rua Tenente Silveira.

Dei de ombros. Afinal, minha emoção determinara que eu lhe desse todo o dinheiro que eu possuía e que eu sabia ser pouco.

Continuei meu caminho rumo ao trabalho, remoendo minha indignação com a fome de alguns e a indiferença de outros, com as bandalheiras dos ladrões que regem a economia do país e a falta de oportunidade às vezes enfrentada pelas pessoas.

Durante anos tentei entender a atitude daquele moço.

Sua fome lhe provocaria um impulso tão grande e uma necessidade tão urgente, a ponto de pegar o dinheiro que lhe oferecia da mesma maneira que eu vira, anos antes, um macaco fazer ao lhe oferecer uma banana? (O macaco arrancou-me a banana da mão e com ela um pedaço de minha pele). A fome transformaria o ser humano num animal? A falta de oportunidade, a exclusão do acesso aos bens de consumo, diariamente oferecidos a todos e só atingível pelos privilegiados, transformaria o ser humano num animal?

De súbito, a ficha caiu. Quinze ou mais anos depois!

Aquele moço não me viu oferecer-lhe dinheiro. Ele viu dinheiro na minha mão estendida e atacou.

Roubou-me!

(Que bosta! Logo quando eu ia praticar a minha boa ação escoteira!).

Em que pese a minha extrema lentidão mental, hoje concluo que a falta de oportunidades, a fome e a miséria, transformam o ser humano em ladrão. Num triste e indigno ladrão que age como um animal com fome, aprisionado neste grande jardim zoológico chamado Brasil.

Que nojo!

(1997)