A PARTURIENTE

 

Corria o ano de 1962, ano da Copa do Mundo no Chile em que o Brasil foi bi-campeão e o seu Tê, durante um jogo, de tão nervoso deu um tiro de 38 no rádio.

Eu trabalhava no escritório da Cia. Florestal de Santa Catarina, em Urubici, bela e hospitaleira cidade do Planalto Serrano de Santa Catarina.

Com meus 57 quilos para l,82 m de altura, minha magreza se acentuava e meu óbvio apelido era Magro. Principalmente porque, Gordo era o Itamar Alves, funcionário do escritório e mais velho de firma que eu. Ele pesava uns 90 quilos para 1,80 m de altura.

Foi assim que um dia o seu Pereira, gerente da filial, me chamou e me mandou fazer não sei mais o quê em uma das treze serrarias da Companhia, lá no Alto da Serra das Goiabeiras, em Urubici. Parece-me que era a Serraria Sagrado Coração de Jesus.

Lá fui eu, ao volante de uma "pick up" Willys 1950, importada, com tração nas 4 rodas.

A serraria ficava a uns 25 km da sede de Urubici. Uma hora e pouco lá estava eu fazendo o que tinha que fazer. Seu Emiliano, o empreiteiro, sempre simpático e bonachão, mandou sua mulher fazer um suculento almoço. Comi à vontade e depois me dispus a voltar para Urubici.

Embarquei na "pick up", dei partida no motor que pegou com muita dificuldade, arranquei e ouviu-se aquele estalo e a camioneta ficou em ponto morto. Engatei a primeira, segunda, terceira, ré; tração dianteira, redução e nada. O carro não saiu mais do lugar.

- Quebrou, seu Emiliano. - disse eu ao empreiteiro que se aproximava.

- O jeito então é você ir embora a pé, ou levar o 17 que está precisando de uns consertos nos feixes de molas. Deixa a camioneta aqui e o João Pedrini depois vem tirar a caixa de câmbio que quebrou.

Dezessete era o número do caminhão Ford 46, cabina de madeira, com prancha para transportar toras, que ficava à disposição dos serviços da serraria.

Peguei o caminhão e me pus na estrada.

Mal percorrera um quilômetro, quando em frente a uma casa na beira da estrada uma menina assustada fez sinal para que eu parasse.

Como naquele tempo não havia transporte de forma alguma, levar pessoas até à cidade era uma simples obrigação de todo mundo que transitava de caminhão, jipe ou camioneta por aquelas estradas.

Parei e perguntei à menina:

- O que foi, moça?

- A mãe tá passando mal. Tá lá dentro.

Desembarquei e adentrei à pequena casa.

Deitada na cama estava uma mulher em avançado estado de gravidez e uma menina de uns doze anos, passava-lhe um pano úmido na testa.

- Buenas, que é que está acontecendo?

- Precisava que o senhor me levasse para o hospital em Urubici. O neném está nascendo e a parteira não chegou até agora. Já perdi as águas e acho que vou ganhar logo. Preciso procurar recurso, porque aqui nesse fim de mundo não tem ninguém pra ajudar a gente.

- Então vamos, a senhora está pronta?

- Estou. As crianças ficam em casa. Cuidado com o fogo, Maria - disse ela à garota de doze anos.

- Pode deixar, mãe, respondeu a menina com um fio de voz, tolhido pela vontade de chorar e o medo de ver a mãe partir para o hospital.

A mulher embarcou e sentou-se no banco ao meu lado. A cabina era feita de madeira e era bastante espaçosa, possibilitando que até quatro pessoas se acomodassem sentadas.

A mulher gemia muito e eu comecei a acelerar um pouco mais, onde dava, cheguei até a colocar 30 km por hora. Mas a descida da Serra da Goiabeira, longa e extremamente íngreme, demorou um século.

Ainda por cima. bem no último lance de morro, o freio deu uma pifada e o caminhão despencou em alta velocidade. Sorte que não havia curvas na estrada, senão era acidente na certa. Como a estrada não passava de um carreiro, o caminhão deu fortes solavancos e fez com que a mulher fosse jogada contra o teto umas cinco ou seis vezes. Mas fazer o quê...

Com dificuldade parei o caminhão, tremendo de medo pelo susto que eu levei com a pifada do freio, quase não consegui desembarcar. A mulher, sentada no banco, contorcia-se nos espasmos dos trabalhos de parto.

- Seu contador, (ela não sabia meu nome, sabia apenas que eu era do escritório da companhia, e portanto, contador), acho que a criança está nascendo.

- O quê? - berrei, tremendo ainda mais.

- A criança está nascendo, o senhor precisa me ajudar.

- Mas eu não sei nada dessas coisas...

- Eu já tive quatro filhos e sei muito bem como é. Só que preciso de ajuda. O senhor tem coragem?

- Tenho - gaguejei.

A mulher estava deitada no bando a essas alturas e foi me orientando:

- Vai lá para o outro lado e ajuda a puxar a criança que já está saindo.

Tremendo eu fui.

Que coisa horrível! Até aquela idade, 18 anos, eu tinha visto muito poucas mulheres nuas e fiquei estarrecido com o que vi. Quase desmaiei, mas recolhendo um último tiquinho de coragem comecei a puxar a criança que logo saiu, junto com uma golfada enorme de sangue. Senti engulhos, mas consegui me dominar.

A mulher, firme e forte, foi dando as ordens:

- Agora pega a criança pelos pés, levanta e dá um tapa na bunda.

Paft!

- Nhé! Nhé!

- Agora coloca a criança em cima da minha barriga.

Obedeci.

- É um menino! O pai vai ficar contente. - disse a mulher aos ver os órgão genitais do bebê, com aquele enorme saco.

Eu até achei graça do sacão do garoto. Bah! que grande!

- Amarra o umbiguinho dele, aqui e aqui, apresentou ela aquela enorme tripa grossa, roxa, vermelha e branca que vinha de dentro dela e grudava no umbigo do garoto.

- Com quê, dona? - perguntei eu.

Ela hesitou um pouco e sentiu-se um pouco perdida. De repente lembrou:

- Com o cordão do seu sapato, homem.

Tirei o cadarço e amarei, primeiro um lado, depois o outro. Por sorte, canivete eu tinha no bolso.

- Agora corta aqui no meio.

Com repugnância e muita dificuldade, cortei.

Eu estava todo sujo, a mulher toda ensangüentada, o garoto também.

- Embrulha ele nuns panos aqui da sacola - disse ela, ajudando também.

- Agora o senhor me leve para o hospital para fazer o resto.

Fui para trás do caminhão e vomitei até as tripas.

Devagar, cuidando muito para não aumentar a velocidade, sempre em primeira e segunda, depois de muito tempo cheguei finalmente ao hospital onde entreguei a mulher aos cuidados profissionais e fui para casa.

No outro dia, um caboclo me procurou no escritório da companhia.

- Foi o senhor que pegou o meu garoto ontem?

- Eu? Eu não a peguei garoto nenhum.

- Como, não, minha mulher disse que o senhor ajudou ela no parto...

- Ah! - respirei aliviado. Pensei que você estava dizendo que eu tinha atropelado o seu garoto com o caminhão.

- Não, não. Vim aqui agradecer ao senhor, seu contador e dizer que o garoto leva o seu nome!

E sorriu um sorriso feliz com aquela boca quase sem dentes.

Eu me senti orgulhoso, mas ainda hoje, tantos anos depois, tenho nítida na memória a lembrança daqueles momentos apavorantes em que eu não sabia o que fazer e tinha que fazer alguma coisa, custasse o quanto custasse.

Nunca mais vi aquelas pessoas, mas sempre tive certeza de que aquela mulher, além de mãe, era uma forte, como têm que ser todas as mães.